Tensões no Império Romano: A Data do Apocalipse e a Perseguição Cristã


Por Ray Summers

Todos os críticos concordam que o Apocalipse foi escrito num período de dura perseguição desencadeada no primeiro século. A primitiva tradição achava que o livro foi escrito durante o reinado e a perseguição de Domiciano.

Outros muitos acham que foi por ocasião da perseguição de Nero. Outros ainda sugerem o reinado de Vespasiano.

A opinião moderna acha que foi no período da perseguição de Domiciano, por motivos que apresentaremos mais tarde. É preciso analisar e discutir todos esses períodos para se determinar a época mais provável em que se escreveu o Apocalipse.

1 - NA ÉPOCA DE NERO

Muitos críticos, em toda a história da crítica do Novo Testamento, sustentam que foi na época de Nero.

a) As evidências desta data são de natureza interna

Alguns entendem que o capítudo 11 indica que o Templo de Jerusalém ainda estava de pé, e que, por isso, o livro foi escrito antes do ano 70 A.D.

O livro foi escrito durante uma perseguição, e é fato conhecido que Nero perseguiu os cristãos.

Weigall forja uma base a favor da data neroniana ou pouco depois, no reinado de Galba, pois acha que Nero é a pessoa aludida no livro como a besta que traz o número 666. (Artur Weigall, Nero (New York, O. P. Putnam's Sons, 1930), p. 3 em diante e p. 394 em diante.)



b) Há muitas objeções à data neroniana 

Em primeiro lugar, não se pode com firmeza afirmar que o capítulo 11 indica que o Templo ainda estava de pé.

O livro foi escrito com tantos termos simbólicos, que não podemos afirmar positivamente que o Templo ainda não fora destruído, notadamente quando é mais forte a evidência a favor duma data posterior.

Muitas evidências nos proíbem afirmar que o livro foi escrito durante a perseguição neroniana. O Apocalipse informa claramente que os cristãos estavam sofrendo perseguição por haverem recusado cultuar o imperador.

No tempo de Nero não houve tal imposição. Ele perseguiu os cristãos para tirar de seus ombros a acusação de haver mandado incendiar Roma, querendo com a perseguição insinuar que foram os cristãos os autores do dito incêndio. 

A suspeita popular era de que o próprio Nero fora o autor do incêndio, que destruiu grande parte da cidade; como culpados ele apontou os cristãos, que eram odiados pela ralé, e lhes infligiu as mais cruciantes torturas.

Grande número de cristãos foi caçado e esquadrinhado, por esse suposto crime, mas não há nenhuma notícia de ter sido desencadeada a perseguição por haverem eles se recusado a cultuar o imperador. 

A perseguição neroniana limitou-se à cidade de Roma, e nunca chegou a outras províncias do império. Nunca se ouviu falar, no período neroniano, em exílio como forma de castigo, pois isso seria muito fraco e muito brando para satisfazer à cidade pagã.

As condições internas das igrejas também não favorecem uma data anterior. É fato que algumas daquelas igrejas tinham sido organizadas havia poucos anos, quando se deu a perseguição de Nero. É impossível que tivessem crescido e se desenvolvido tão rapidamente em tão pouco tempo.

A base apresentada por Weigall, em defesa da data neroniana, é insegura, por uma razão: a de não admitir o conceito tradicional dos historiadores a respeito de Nero.

Ele tenta provar que, se os historiadores não houvessem admitido os preconceitos de cristãos incultos, Nero jamais seria olhado como um terrível tirano tal qual a História o pinta. 

Weigall passa por cima de pontos mui importantes, no afã de firmar sua opinião neste ponto. Também se revela exagerado, quando afirma que os peritos são todos unânimes em admitir que o número 666 é um criptograma (nome secreto) de "Neron Kaisar" (no grego) abreviado para "Nron Ksr" (no hebraico) que se reduz aos números 50, 200, 6, 50, 100, 60 e 200, que, somados, nos dão o número 666.

Os peritos estão muito longe da unanimidade neste ponto. Até parece que defensores desta opinião constituem minoria.

Finalmente, como objeção à data neroniana, vemos que, não existindo nenhum testemunho certo na Igreja Primitiva a favor desta data, há muitos que indicam a data domiciânica. Examinaremos isto logo adiante.



2 - NO REINADO DE VESPASIANO 

O reinado de Vespasiano (69-79) foi sugerido como sendo o tempo exato em que se escreveu o Apocalipse. Tal idéia, porém, estriba-se numa única evidência, e assim mesmo de natureza interna. 

No cap. 17, versículos de 9 a 11, do Apocalipse, lemos:

"Aqui há sentido que tem sabedoria. As sete cabeças são sete montes sobre os quais a mulher está assentada; e são sete reis; cinco já caíram, e um existe, e outro ainda não é vindo; e, quando vier, deve durar um pouco de tempo. E a besta que era, e já não é, é também o oitavo, e é dos sete; e vai à perdição."

Evidentemente aqui estão em cena os imperadores do Império Romano. Nosso maior problema agora é saber se devemos ou não tomar os números literalmente, e com que imperador devemos iniciar a contagem.

Em geral os números do Apocalipse são simbólicos, mas aqui parece que deve ter significado literal para se ajustarem à interpretação dos símbolos usados pelo autor. 

No conceito popular, o primeiro imperador romano foi Júlio César; estritamente no que respeita à lei constitucional, o primeiro a dar ao império uma forma fixa de governo foi Augusto. A série de "reis" deveria legitimamente começar com um deles, e não com um imperador posterior. 

Aparentemente, João começa com Augusto e nos dá a seguinte sequência: "Cinco já caíram" — são Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero; "um ainda existe" — Vespasiano; "um que virá por pouco tempo" — Tito, que de fato governou só dois anos; "a besta que era, e já não é, é também o oitavo, e é dos sete" — é Domiciano, que é representado como uma reencarnação de Nero; dar-se-ia um recrudescimento de perseguições do mesmo tipo das de Nero, porém, muito mais intensas e de maior âmbito. 

Este plano omite Galba, Oto e Vitélio, mas estes estiveram no poder mui breve tempo cada um e nunca foram pelas províncias reconhecidos como imperadores. Assim, o que é descrito como reinante ("o que existe") era Vespasiano, A.D. 69-79.

Depois dele, Tito governaria dois anos; depois de Tito, viria o dilúvio da perseguição — o Nero reencarnado, por assim dizer, em Domiciano, com inteiro poder satânico para toda sorte de males aos cristãos e ao Estado.

Isto parece fechar a questão e firmar a data em que se escreveu o livro dentro dos dias do reinado de Vespasiano. Mas todas as outras evidências são contra esta idéia. Vespasiano não perseguiu os cristãos e todo o vislumbre de evidência, externa ou interna, exclui a época de Vespasiano.

O versículo 10 indica Vespasiano, mas o 11 indica um oitavo anônimo que era um dos sete já mencionados. São apresentadas, então, duas ideias.

A primeira, a de que o escritor desses dois versículos, escrevendo no período de Domiciano, como que se coloca dentro da época de Vespasiano, representando a História sob a forma de profecia apocalíptica, para assim enganar os romanos quanto à época certa em que se escrevera o livro. 

A segunda, a de que o versículo 11 (Domiciano ressuscitando Nero e fazendo de novo o que Nero fez) representa uma adição posterior, incerta para atualizar a data.

Devido ao fato já apresentado de que toda a evidência indica que o livro foi escrito no tempo de Domiciano, parece que a primeira das soluções é a mais certa. 

Em cada uma das duas soluções o ponto firme, afinal, é a favor da época domiciana, e isto concorda com a evidência geral contida no restante do livro. (A teoria aqui esboçada é defendida por Swete, Beckwith, Hengstenberg, pelo American Commentary, por Dana, Pieters, e pelo Expositor’s Greeke Testament.)

Weigall (Weigall, op. cit., p. 395.) começa com Augusto e avança com Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, como sendo os cinco que caíram. Continua em sucessão direta com Galba como sendo "o que existe" e Oto como "o que ainda não veio". "O oitavo" acha ele que é Nero novamente, em face do mito do Nero redivivo. 

Observamos aqui dois enganos. Historicamente, Weigall se equivoca, porque as províncias romanas nunca reconheceram Galba como imperador. Equivoca-se ainda ao admitir a idéia de que João creu no mito do Nero ressuscitado. Ele não acreditou nisso. Ele adaptou o mito e o empregou para ilustrar o mal que Domiciano traria.

Tertuliano estava tão certo de que o livro fora escrito durante o reinado de Domiciano que ele começa com Domiciano como "aquele que é" e conta de lá para cá. Assim fazendo, ele comete vários erros históricos. Sua contagem toma Galba como o primeiro imperador romano — e isto é coisa imperdoável!

Toma Trajano como a reencarnação do monstro Nero. Isto é crime contra a História, para se dizer o menos, visto que Trajano foi o melhor dos imperadores romanos, segundo a unânime tradição da antiguidade. A teoria de Tertuliano não tem valor, a não ser no ponto em que exprime a crença sobre o dia em que o livro foi escrito, ao tempo de Domiciano.



3 - NO PERÍODO DOMICIANO

A crítica do Novo Testamento dá como a data mais provável da confecção do Apocalipse o período domiciano. Essa é a data tradicional, quando examinamos o testemunho do passado até nos avizinharmos aos dias em que o livro foi escrito. 

Irineu (V. 30, 3) diz que o livro foi escrito no fim do reinado de Domiciano. Orígenes acha que João o escreveu quando exilado em Patmos, sem dúvida, sustentando a tradição do exílio domiciânico, ainda que não nos dê o nome do imperador.

Vitório diz que João escreveu o que viu enquanto esteve na ilha de Patmos por ordem de Domiciano. Hipólito, Clemente de Alexandria, Hegésipo e Jerônimo assim também pensaram. Isto nos mostra que a igreja Primitiva acreditava que o livro foi escrito durante a perseguição de Domiciano.

A situação geral apresentada pelo livro está de acordo com a tradição antiga. As condições apresentadas pelas igrejas da Ásia são a dum período consideravelmente posterior à morte de Nero.

A vida interna delas passara por muitas mudanças desde o ministério de Paulo em Éfeso e mesmo desde a confecção das epístolas aos Efésios, aos Colossenses e as duas epístolas a Timóteo em Éfeso. 

Em Éfeso as coisas tinham piorado espiritualmente, e em Sardo e Laodicéia a fé estava morrendo ou já estava morta. O partido nicolaíta, do qual não se encontra nenhum traço certo nas epístolas paulinas, havia tomado vastas áreas e tinha fortes raízes. 

É certo que tais males podiam crescer rapidamente, especialmente em comunidades constituídas de pagãos convertidos; mas não poderiam ter crescido tanto e tão rapidamente num período de apenas quatro ou cinco anos.

Teriam que encontrar-se nessas condições para que o livro viesse a retratar suas verdadeiras condições e ser um fato ter sido escrito no período neroniano. 

A natureza das heresias descritas nos capítulos 2 e 3 pressupõe bom conhecimento do gnosticismo incipiente, o qual teria precisado, para desenvolver-se, um período posterior ao do ano 70 de nossa era.

A perseguição dos cristãos, claramente refletida no livro, indica somente o período domiciânico. Houve vários períodos de perseguições de toda sorte.


  • Calígula (41 A.D.), "o imperador louco", perseguiu por motivo religioso; 
  • Cláudio (52 A.D.) expulsou os cristãos de Roma por causa dos atritos destes com os judeus; 
  • Nero (64-68 A.D.) desencadeou intensa perseguição em Roma pelos motivos que já vimos atrás; 
  • no tempo de Vespasiano houve poucas perseguições (69-79); 
  • Domiciano (81-96) é o único imperador que passou à História como o que banhou o império no sangue dos cristãos. 

Perseguiu com o fito de obrigar os cristãos a cultuar o imperador. Por estranho que nos pareça o fato de atribuir-se o caráter de divindade a um imperador, é verdade que os conceitos religiosos do antigo mundo gentílico em nada obstaculizavam essa apoteose. 

O politeísmo, com sua escala e série de gradações de deuses facilitava muito o endeusamento das pessoas cujo ofício, poder ou realizações, iam além do ordinário e tocavam as raias do sobrenatural. Julio César aberta e sem cerimônias exigiu ser honrado como deus e colocou sua estátua nos templos, entre as dos deuses pagãos. 

Augusto proibiu a apresentação de honras divinas à sua pessoa em Roma, porém não recusou o título de “augusto”, até então dado somente aos deuses, e nas províncias admitiu templos que foram dedicados juntamente com a deusa Roma. 

O culto assim estabelecido progrediu nos reinados seguintes, variando apenas um bocado na ênfase que se lhe dava conforme às exigências dos vários imperadores, tornando-se, porém, gradativamente, um fator essencial do sistema religioso imperial.

É no reinado de Domiciano que se avoluma, a insistência sobre o culto ao imperador, tornando-se exigência ameaçadora e mais forte que dantes.

Este imperador, devido a uma carreira infame, por ocasião de sua morte, deixou de receber as honras duma apoteose por parte do Senado e se havia revelado mui solícito em receber honras divinas em sua carreira.

Para os seus subordinados tornou-se ele "deus et dominus" (deus e senhor). Suetônio diz que Domiciano iniciava suas cartas com estes dizeres: "Nosso Senhor e Deus ordena que seja feito desta ou daquela forma", e chegou a decretar que só se dirigissem a ele nesses termos, fosse verbalmente, fosse por escrito.

Mandou erigir imagens de sua pessoa por todo o império, a fim de tornar mais popular o seu culto. Segundo Cássio, quando Nerva assumiu o governo, um de seus primeiros atos foi mandar derreter as inúmeras imagens de ouro e prata de Domiciano, fazendo melhor uso do material empregado.

Segundo Plínio. Domiciano considerava qualquer negligência ou engano de seus gladiadores ou qualquer resistência a seus oficiais como ato de menoscabo à sua divindade.

E Plínio prossegue dizendo que Domiciano se elevou acima de todos os outros deuses e escolheu para suas estatuas os lugares mais sagrados do templo e mandou matar multidões de pessoas por se recusarem a cultuá-lo.

Vemos, pois, que há mui forte evidência de que, sob Domiciano, a cristandade teve que entrar numa luta de vida ou morte com o poder imperial que, mesmo quando mandavam imperadores mais discretos, sempre exigia mais do que os cristãos podiam ceder.

Era, pois, inevitável essa colisão muitíssimo forte e grave. Muitas eram as modalidades de castigo. Uns eram martirizados; outros, exilados; outros mais, torturados, para que admitissem a divindade do imperador; a outros confiscavam-lhes as propriedades e a muitos outros perseguiam com tais punições reunidas. 

Tudo isso se reflete de modo completo no Apocalipse. A maior parte desse castigo caiu sobre a Ásia Menor porque ali se firmara a principal fortaleza da cristandade depois do ano 70 de nossa era.

Estando residindo lá a maioria dos cristãos do tempo, era natural que maior fosse lá "a resistência ao culto no imperador, e, daí, as perseguições mais fortes desencadeadas na Ásia Menor. Isso tudo se reflete não só no livro do Apocalipse, mas também noutras obras sobre esse período. O Apocalipse é a palavra de coragem, dirigida por Deus aos cristãos que passavam por aquelas terríveis provações.

O mito do Nero redivivo é outra evidência a favor do período domiciânico. Tal mito, de que trataremos pormenorizadamente mais tarde, afirmava que Nero não morrera dos golpes que a si mesmo infligira, mas refugiara-se no Oriente, ganhando as graças dos habitantes da Partia, e lá estivera organizando um exército para voltar a tomar posse de Roma.

Tal mito levou vários anos para se desenvolver, e, por isso, não se adapta ao período neroniano. Deveria ser coisa popular, sim, no período de Domiciano, e então, como ilustração, foi empregado com sucesso por João no Apocalipse.

Claro está, pois, que, em tudo quanto se refere ao conflito entre o poder terreno e o Reino de Cristo, conseguimos um excelente ponto de partida na História quando admitimos que o Apocalipse foi escrito sob o reinado de Domiciano, ao passo que isto não depende em nada de qualquer outra hipótese. 

Assim, a morte de Domiciano (96 A.D.) é o nosso "terminus ad quem" (ponto terminal); um "terminus a quo" (ponto inicial) nos é dado pela data de sua elevação ao trono (81).

Mas o limite maior com grande probabilidade poderá ser levado para cerca de 94-96 A.D., visto que a ciumenta insistência sobre seus direitos às honras divinas e o encorajamento dos delatores (espias) a seu serviço pertencem aos derradeiros anos de seu reinado. 

Sentimo-nos bem, admitindo esta posição, porque temos para prová-la e sustentá-la, com muita base, a evidência interna e também a evidência externa.

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