Papai Noel
Ele até que era simpático. Um velhinho de barbas brancas, cabelos longos e brancos também, conhecido no mundo inteiro.
Só tomei conhecimento de süa existência através de informações e quando eu já tinha idade para analisá-lo melhor. Não sei onde ele passa o resto do ano, ou melhor, o ano seguinte, pois ele só aparece no Natal.
A primeira vez que tomei conhecimento mais direto com ele foi quando eu tinha 4 anos. Ele me deu, pelo menos me disseram que foi ele, um cachorrinho de lata que só tinha a cabeça e o pescoço de cachorro! O resto do corpo era um tipo de borracha de corneta que a gente apertava para o cachorrinho latir - latir não seria bem o termo, aquilo mais parecia soluço do que latido, mas vá lá. A boa vontade e a ilusão me ajudavam a confundir os sons.
O brinquedo e a alegria não duraram mais do que 2 horas. Na primeira oportunidade que derrubei meu cachorrinho, um menino da vizinhança que havia ganhado um belo de um caminhão colorido, deu uma de Kiko pensando que eu era o Chaves, pisou em cima do meu cachorrinho que entre outros estragos, perdeu a voz. E...cachorro sem voz... sem latido, comecei a pensar - se é verdade que cachorro que. late não morde a recíproca também deve ser verdadeira - cachorro que não late, morde. Fiquei com medo do cachorrinho e o joguei fora. Difícil foi explicar pro meu pai como o cachorrinho tinha fugido!
Então eu comecei a pensar no velhinho que me deu o cão - ou seria melhor dizer que me deu o cano? Esse velhinho, de duas uma: ou ele é cego ou é um bajulador de ricos. Será que ele não via a diferença entre a casa do menino a quem ele deu o caminhão colorido - casa de rico, casa de luxo, e a minha casa que, só com excesso de boa vontade, poderia ser chamada de casa, para deixar aquele cachorrinho fajuto! Ele devia saber que casa de rico é que precisa de cão de guarda, e ter dado o cachorrinho para o menino rico e o caminhão colorido para mim! Ou então era pucha-saco de rico mesmo e não adiantava nada argumentar com ele.
Daí eu comecei a observar a vizinhança e descobri que o velhinho era um grande gozador. Um grande safado mesmo. Nas casas dos ricos a gente via a criançada brincado com brinquedos caros movido a pilha, bonecas de borracha com movimentos nos membros e nos olhos, patinetes, bicicletas, piões sonoros, coloridos, uma festa! Na frente dos casebres dos pobres era uma exposição de cachorrinhos iguais, ou mais feios do que o meu, bonecas de celulóide - que a gente dizia sirilóide - que, por ser uma mistura de cânfora com algodão - pólvora, pegava fogo com a maior facilidade, com braços e pernas duros, caras pintadas de vermelho escandaloso; caminhõezinhosde madeira, feitos pelo própro doador, ou então boizi- nho de xuxu com perna de palitos de fósforos e cabeça de batatinha!
Parece que a gente brincava com aquilo por desencargo de consciência, meio sem graça, desconfiados, não sei de quem nem do quê.
Alguma coisa estava errada com o velhinho que alguns chamavam de o bom velhinho. Pois sim. Se fosse bom tinha que ser com todos e não só com os meninos que tinham pais ricos e que poderiam comprar os presentes para os seus filhos. Se fosse bom, daria bons presentes para os meninos pobres cujos pais não podiam comprar presentes caros!
Eu disse que ele só podia ser cego ou bajulador de ricos, mas ele podia ser burro também, procedendo como procedia, dando o melhor para quem não precisava e o refugo a quem mais precisava de ilusão, já que a realidade da vida era uma dureza sem fim!
Passando pela frente de uma casa de ricos ouvi a criançada cantando: "como é que papai Noel, não se esquece de ninguém; seja rico, seja pobre, o velhinho sempre vem". Logo que cheguei em casa perguntei a minha mãe quem tinha me dado o cachorrinho fujão. - Foi papai Noel, ela me disse.
Pois sim, pensei. Seja rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem. Por mim não precisava vir mais. Criança não pode mentir, mas adulto pode mentir pra criança?
Papai Noel não passa de mentira e uma mentira tão grosseira...
(Extraído do livro “Respingando – Crônicas e Memórias”, 1ª Edição – Rev. Samuel Barbosa)
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